AS JOIAS DA NAÇÃO E A ESTABILIDADE DO SERVIDOR PÚBLICO

O objetivo deste texto é o de analisar, de forma não exaustiva, o recebimento de presentes por autoridades públicas e a postura dos servidores públicos, frente a condutas duvidosas ou ilegais. Evidente que a legalidade, a moralidade, a publicidade, impessoalidade e a eficiência, princípios constitucionais que estão no artigo 37, “caput” da Constituição Federal, fazem parte do rol de deveres dos servidores da administração pública. Em tese, essa obviedade não demandaria maiores comentários. Entretanto, “o caso das joias”, ainda em curso, serve para demonstrar, explicar e justificar a diferenciação entre o público e o privado e o fundamento para a estabilidade funcional dos servidores.
A estabilidade do servidor público detentor de cargo efetivo, após o período de estágio probatório, na forma do artigo 41 da Constituição Federal, garante a permanência no serviço público. Assim, o servidor público concursado, seja na esfera federal, estadual ou municipal, somente poderá ser demitido nas hipóteses de sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa ou por avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. Vista como um “privilégio” ou salvo-conduto para a “preguiça” e o ócio, como afirmam os mais incautos, a “prerrogativa” da estabilidade funcional é uma das garantias de preservação do interesse público. No “caso das joias” isso fica evidente.
Os cargos públicos efetivos são aqueles que atendem a demandas permanentes do Estado, como é o caso dos agentes fiscais da receita federal, estadual ou municipal. Pela sua natureza são providos por nomeação decorrente de classificação em concurso público nos termos do artigo 37, II da Constituição Federal. Nomeados e empossados, os servidores concursados passam pelo período de estágio probatório quando será verificada a sua adaptação para realizar as funções. Após esse período o servidor efetivo- o concursado- adquirirá a estabilidade. A garantia da estabilidade contrapõe-se à garantia do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho. Enquanto esses podem resgatar o FGTS no caso de demissão sem justa causa, entre outras hipóteses. A estabilidade não é um privilégio, mas uma prerrogativa funcional que objetiva manter a proteção dos servidores em casos de eventuais atos de corrupção, perseguições, pressões políticas ou governamentais, como aconteceu no caso da apreensão das joias. A estabilidade visa a garantir a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.
Infelizmente, o governo federal anterior continua fértil na produção de fatos inusitados, complexos e até mesmo ilegais. Nessas condutas fica clara a confusão entre Estado e governo, a mescla entre o público e o privado e a priorização do interesse privado. Por isso, provocam análises sobre o ponto constitucional, legal e jurídico, o que se pretende aqui.
O mais recente episódio envolvendo a anterior presidência da república, ocorrido no ano de 2021, refere-se aos presentes recebidos de governo estrangeiro. Prática comum entre as nações amigas, os presentes recebidos incorporam-se ao patrimônio público. Isso porque são recebidos pelo chefe de Estado ou seus representantes- e não pelas respectivas pessoas físicas. No caso em comento, segundo o que consta na mídia até o dia de hoje, foram recebidos presentes do governo saudita no valor aproximado de 17 milhões de reais. Esses presentes teriam sido dados pela Arábia Saudita à ex-primeira-dama.
O recebimento de presentes- que faz parte do cotidiano dos representantes dos entes federativos e agentes políticos do alto escalão- possuem regras. Essa normatização e instituição de normas de “compliance” buscam aprimorar a conduta dos agentes públicos.
Veja-se que não há prova de que tenham sido direcionadas à ex-primeira-dama. Esse tipo de bem também se submete ao protocolo determinado pela Receita Federal e que não foi observado.
Os bens foram recebidos por recebidos pelo representante do governo brasileiro, ou seja, de modo institucional. Mais uma vez a confusão entre o público e o privado. Ainda, é incomum, mesmo para um país abastado como a Arabia Saudita, presentear nações amigas com objetos de tão elevado valor.
Também deve ser feita uma distinção entre presentes, brindes e mimos personalizados. Não fosse a razoabilidade e a impessoalidade a conduzir o recebimento de presentes, é certo que bens no valor de 17 milhões de reais não se enquadram na categoria dos mimos ou brindes. Há legislação e decisões do Tribunal de Contas da União abordando essa matéria, inclusive com determinação de devolução de presentes recebidos por autoridades, ao acervo da União.
A Lei Federal n.8394, de 30 de dezembro de 1991, dispôs sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. Foi regulamentada pelo Decreto Federal n.4.344, de 26 de agosto de 2002. Ainda incidente no contexto o Decreto Federal n.6759 que regulamentou a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior. Esse foi um início de normatização parcial da matéria. Diante da ausência de legislação mais específica a respeito do tema, coube ao Tribunal de Contas da União orientar sobre o recebimento de presentes pelas autoridades. No ano de 2016 o TCU determinou as seguintes providências, conforme demonstra parte da ementa do acordão 2255, de 31 de março de 2016, de relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues:
“ (…)
: 9.2.1 incorporem, com fulcro no art. 3º, parágrafo único, inciso II, do Decreto 4.344/2002, ao patrimônio da União todos os documentos bibliográficos e museológicos recebidos pelos presidentes da República, nas denominadas cerimônias de troca de presentes, bem assim todos os presentes recebidos, nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de estado ao exterior, ou das visitas oficiais ou viagens de estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil, excluídos apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo Presidente da República;
(…)
Ou seja, desde o ano e 2016 foi dada orientação à Casa Civil sobre o recebimento de presentes. O recentíssimo acordão 326, de 01 de março de 2023, relatado pelo Ministro do TCU, Antônio Anastasia. também tratou do tema, conforme a ementa:
“Representação. Suposto recebimento de presentes de uso pessoal e elevado valor ( relógios Cartier e Hublot), ofertados por membros do governo do Qatar a integrantes de comitiva oficial do governo federal brasileiro que acompanhou o Presidente da República em missão diplomática em 2019. Conhecimento. Possibilidade de troca protocolar de presentes entre membros de missões diplomáticas. Valor elevado dos presentes recebidos pelos agentes brasileiros, a extrapolar o propósito meramente simbólico do ato protocolar. Princípios da razoabilidade e da moralidade. Norma regulamentar a impor, na hipótese, a entrega do bem à União (art. 3º. Da Resolução CEP/PR) Procedência. Ciência e recomendação.”
Então desde o ano de 1991, e mais especificamente, do ano de 2016 as regras sobre o recebimento de presentes tornaram-se claras, com recomendações objetivas à Casa Civil, órgão de Estado. Portanto, não se justifica eventual alternativa de desconhecimento do procedimento alfandegário, independente da natureza dos bens repatriados.
Não fosse o inusitado de as joias terem vindo na bagagem pessoal de assessores do governo, a informação do portador à alfandega foi a de nada a declarar. Entretanto, a bagagem foi vistoriada e as joias foram apreendidas pela Receita Federal, onde permanecem até o momento.
Se peculiar são esses fatos, mais curiosa a sucessão de atos do governo federal na tentativa de liberação das joias apreendidas. A participação de três ministros de Estado, integrantes do Itamaraty, das Forças Armadas e ofícios da própria Presidência da República para o resgate dos bens, foi relatada pela mídia. O peso do poder fez-se presente objetivando incorporar os bens ao patrimônio privado da ex-primeira-dama.
Nos últimos dias de governo, relata-se, que um avião da Força Aérea Brasileira partiu de Brasília para São Paulo visando recuperar o presente valioso. Novamente o uso da estrutura público para fins não públicos. Na fala do emissário do governo, a justificativa para a viagem foi o de que “nada poderia ficar de um Presidente para outro”. Essa afirmativa demonstra que a intenção não era a de incorporar os bens ao patrimônio público. Se os presentes são do Estado- e são-, pela lógica, eles permanecerão no patrimônio público, independente da troca de governo. Novamente impunha-se a impessoalidade.
Visto esse relato de outro ângulo, o governo anterior não obteve a recuperação das joias porque o grupo de agentes fiscais adotou as competentes medidas legais. Mesmo com a insistência do governo federal, os servidores públicos envolvidos mantiveram sua conduta profissional, defendendo o interesse público, interesse do Estado. Abrigados pela estabilidade puderam trabalhar com a blindagem da prerrogativa funcional. Pode-se imaginar que no caso em comento, o servidor sem estabilidade poderia ser afastado do seu local de trabalho, perseguido, punido ou até mesmo desligado do serviço público.
O “caso das joias” ainda não foi totalmente esclarecido, mas serve de ilustração da relação da atuação das autoridades, a preservação do interesse público e a justificativa para a previsão da garantia da estabilidade funcional.

Andrea Teichmann Vizzotto

Fonte da imagem:https://segredosdomundo.r7.com/tesouros/. Acesso em 8 de março de 2023

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