As mudanças climáticas e o direito urbanístico brasileiro

As mudanças climáticas são inegáveis, com os mais variados exemplos de desastres espalhados ao redor da Terra.  A ação do homem ao longo dos séculos exigiu que a Natureza se mostrasse de outro modo, adaptando-se ao tratamento que tem recebido.

O maior desastre climático ocorrido no Rio Grande do Sul, até o momento, dizimou cidades e deixou marcas indeléveis no solo gaúcho. Ainda em recuperação, as cidades do Sul viram-se obrigadas a encontrarem soluções rápidas e inovadoras para minimizar os efeitos deixados pela passagem das águas. A maioria das cidades não estava preparada para enfrentar a força das águas. Ou seja, não havia planejamento e não poderia haver gestão eficaz!

As chuvas intensas e as cheias, ditas como nunca presenciadas, não desfazem a ineficiente política urbana das cidades.  Há várias justificativas para isso entre elas, o modelo cultural ocidental e brasileiro. Veja-se:

No Brasil, o uso e ocupação do solo urbano são orientados pela lógica do modelo ocidental capitalista. Parasitária, essa lógica prosperará enquanto encontrar um organismo não explorado que lhe forneça alimento (o solo urbano). Até esgotar essa fonte, a terra será utilizada. Mas cedo ou tarde, extinguirá as condições de sua prosperidade e de sua sobrevivência (BAUMAN, 2010).

A terra urbana, bem jurídico esgotável, é tratada como se mercadoria fosse. A lógica capitalista de uso e ocupação do solo também decorre da cultura napoleônica sobre a propriedade urbana. O paradigma da propriedade individual, vista a partir do titular do domínio, ainda domina como se o Código Civil de 1916 estivesse em vigor.

A função social da propriedade está nos textos constitucionais desde 1934. Todavia, foi na Constituição de 1988 que foi alçada a princípio condicionante da natureza do direito. Além disso, por primeira vez, a Constituição Federal dedicou um capítulo específico à política urbana. Passou-se da proteção do titular do direito à proteção da função que a propriedade urbana deve possuir. Essa alteração de paradigma refletiu-se na legislação infraconstitucional com a edição da Lei Federal n. 10.257 de 5 de julho de 2001- Estatuto da Cidade, Lei Federal n. 12.608 de 10 de abril de 2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, e a Lei Federal n.13.465 de 11 de julho de 2017, sobre regularização fundiária, para citar as principais.

Entretanto mesmo com a alteração de paradigma e acervo legislativo percebe-se haver um desencaixe (HABERMAS, 2001) entre a teoria e a prática. Mesmo com a legislação existente questiona-se como as cidades litorâneas e às margens de rios não tenham mapeadas as manchas de proteção contra as cheias? Como poderia se admitir ocupação de áreas de risco nos territórios urbanos? Como não haver protocolos integrados de evacuação de pessoas e animais para os casos de desastres?  Como admitir que cidades sujeitas a riscos de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos perigosos não estivessem incluídas no Cadastro Nacional contra desastres previsto no artigo 42-A do Estatuto da Cidade?  A resposta poderia ser o ineditismo do desastre. Todavia, desde a década de 70 o Mundo discute o tema urbano-ambiental. No Brasil, pode-se exemplificar que, desde 1979, com a Lei Federal n. 6.766, de 19 de dezembro, ao tratar do parcelamento do solo, está vedada a ocupação de áreas de risco. Desde lá, não há um ano em que o Brasil não seja assolado por tragédias decorrentes de inundações ou desmoronamentos por ocupação irregular.

Assim, em um pensamento muito particular, entende-se que não se justifica o despreparo dos gestores no trato dessas questões. O triste cenário vivido em maio de 2024 demonstrou que nem os municípios, tampouco a sociedade e a comunidade jurídica estão preparados para os eventos climáticos que a Ciência já afirmou que serão cada vez mais frequentes.

Poder-se-ia afirmar que nunca o Rio Grande passou por desastre de tamanha monta.  Todavia isso não se sustenta uma vez que o planejamento e gestão urbanas e, por consequência, a legislação há muito existente, estão embasadas na precaução e na prevenção.

A dinâmica da cidade, que nunca desperta do mesmo modo, demanda conceitos abertos e planejamento amplo e sistemático. Demanda visão direcionada e preparada para o futuro e não limitada a uma legislatura. Objetiva tornar a cidade real na cidade desejada. Para isso necessário o planejamento a curto, médio e longo prazo e gestão constante.

O plano diretor, como instrumento básico da política urbana, legitimado desde a origem pela participação popular bastaria ser executado. Aliado aos planos setoriais de mobilidade, drenagem, saneamento básico, limpeza urbana entre outros, em uma engrenagem permanente, evitariam, e muito, os problemas enfrentados nos desastres ambientais.

Um exercício interessante seria pesquisar na sua cidade a legislação existente e quais as ações de gestão que estão planejadas para o desenvolvimento das cidades e, em especial, para o uso e ocupação do solo. Seguramente, a conclusão é de que as ações são voltadas ao crescimento econômico-não ao desenvolvimento sustentável.

Não se trata de romancear o tema ou encontrar soluções teóricas e fáceis. Mas o planejamento e gestão urbana precisam integrar o debate público e privado como uma das questões mais importantes no convívio em sociedade.

Conclama-se que a advocacia, pública e privada, o Poder Judiciário, os membros do Ministério Público, os gestores e a sociedade civil se preparem para enfrentarem os problemas urbano-ambientais.  O prévio debate e a busca de alternativas e soluções técnicas dentro dos princípios do Direito Urbanísticos precisam ser aprimoradas de modo a evitar as situações de desastre climático.

Referências:

BAUMAN, Zygmund. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

HABERMAS, Jurgen. A produção capitalista do espaço. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2006.

Fonte da imagem: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/27/05.05.2024_- Acesso em 10 de julho de 2024.

Andrea Teichmann Vizzotto

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