A Lei Federal n. 14.871, de 1º. de primeiro de julho de 2021, informalmente nominada de lei do superendividamento, dispõe sobre a concessão e a tomada de crédito de forma responsável. Ainda, prevê medidas de prevenção e tratamento do superendividamento. A ideia é a de proteger as pessoas que, pelo endividamento excessivo, não conseguem manter em dia aos seus compromissos financeiros, sem comprometer a sua subsistência e de sua família. Trata-se de legislação federal com uma abordagem mais protetiva das relações de consumo, principalmente das pessoas mais idosas e com pouca informação.
Superendividado é aquele que, de boa-fé, não consegue pagar as suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer o seu mínimo existencial. Não há um limite indicativo de caracterização do superendividamento, pois essas condições dependerão da situação fática de cada consumidor. A regulamentação da lei ainda não foi editada e a jurisprudência em formação considera que, para fins de superendividamento, o consumidor deve estar com mais de 30% da sua renda líquida comprometida.
A facilidade de acesso ao crédito é um exemplo de abuso nas relações de consumo. As dificuldades decorrentes da pandemia, a falta de emprego e as dificuldades do País são alguns dos motivos para que as pessoas contraiam empréstimos e dívidas além das suas receitas pessoais. O fato é que a legislação abre a possibilidade de saída desse lamaçal de dívidas, permitindo uma reorganização das finanças, até então inexistente. Permite também que os credores possam, de alguma forma, receberem seus créditos.
A meu juízo, afora as normas objetivas e expressas, a lei do superendividamento trouxe uma “nova realidade moral para os endividados”. Vistos como pessoas irresponsáveis, indignas ou geradoras de constrangimento e vergonha para seus familiares, poderão -agora- recuperar-se dessas dificuldades. Sobre essa situação tida, equivocadamente, como constrangedora, é de ser lembrada a figura do “homem de vermelho”, que circulava por algumas cidades brasileiras na década de 60. Essa criatura era representante dos órgãos de proteção ao crédito. Com roupas propositalmente chamativas, os cobradores visitavam os devedores de modo a constrangê-los ao pagamento a dívida. Essa prática, impensável nos dias atuais, reforçava a imagem negativa dos devedores. Embora o Código de Defesa do Consumidor, de 1990, tenha trazido um olhar diferenciado e protetivo para as relações de consumo, essa pecha moral do devedor persiste até hoje. Assim, o amparo legal para apresentação de planos de recuperação financeira do consumidor é uma grande vantagem. A lei também prevê a prevenção e o tratamento do superendividamento para evitar a “exclusão social do consumidor”. Aos poucos, entendo que haverá uma mudança dessa imagem destorcida que foi, ao longo dos anos, imposta aos devedores. Aquele que deve, deve por necessidade ou desorganização, o que não possui, necessariamente, relação direta com o seu caráter e dignidade moral.
Pela possibilidade de repactuação das dívidas de modo planejado, tanto devedor como credor alinharão os seus direitos e devedores, solucionando o conflito de modo amistoso e satisfativo. A educação financeira responsável e o crédito fornecido com informações preliminares também são medidas importantes neste contexto.
Assim, aqueles que estiverem em condições de superendividamento, preenchendo os requisitos legais, que o profissional da área poderá informar, terão a possibilidade de apresentar em juízo, diante de todos os credores, um plano para ajustar suas dívidas a um valor e prazo factível de pagamento. Juntamente com o plano será solicitada a suspensão de ações de cobrança em curso e exclusão do nome do consumidor das listas de proteção ao crédito, se for o caso. Com o plano de repactuação de dívidas, se homologado em juízo, o devedor deverá se comprometer a não voltar ao superendividamento, havendo prazo legal para ajuizamento de nova ação com a mesma finalidade.
Em conclusão, percebe-se que a lei é vantajosa para devedores e credores. Aqueles, pela possibilidade de repactuação e esses pela certeza do pagamento da dívida. A legislação ainda é recente para que se tenha a orientação consolidada dos tribunais. Entretanto, pelas decisões já existentes, verifica-se um novo marco digno e efetivo de regulação das relações de consumo.
Andrea Teichmann Vizzotto
OAB/RS 21.335
Fonte da imagem: https://www.webpoa.com/memoria/o-homem-de-vermelho/. Acesso em 12 de abril de 2023.