As tragédias que assolaram as cidades de Porto Alegre, no sul do Brasil, em maio de 2024 e Valência, região litorânea da Espanha, em outubro de 2024, surpreenderam e consternaram o Mundo. As semelhanças entre os trágicos eventos fazem crer ter surgido nova ordem mundial climática. A intenção deste escrito é a de refletir sobre esses acontecimentos por meio das suas caraterísticas geográficas, climáticas e políticas.
A Natureza passou a devolver ao Planeta, de forma impiedosa, os ataques e devastações. Os dados coletados restringem-se às cidades atingidas, mas sem desconhecer que as águas atingiram as regiões metropolitanas com tanta ou maior intensidade e devastação.
Porto Alegre, localizada no hemisfério sul, no sul do Brasil, foi fundada em março de 1772 pelos portugueses que ali chegaram. É uma planície rodeada por morros, com um arquipélago e banhada pelo Lago Guaíba. Esse corpo hídrico, recebe águas do Rio Jacuí, Gravataí e Rio dos Sinos. As águas do Guaíba desembocam na Lagoa dos Patos que é ligada ao Oceano Atlântico. A área de Porto Alegre é de 486,8 quilômetros quadrados e uma população aproximada de 1.300.000 habitantes em 2024.
A cidade de Valência está localizada no hemisfério norte na região oriental litorânea espanhola entre as cidades de Barcelona e Alicante. Também está em uma planície junto ao Mar Mediterrâneo. Foi fundada antes do nascimento de Cristo. Possui 134,6 quilômetros quadrados e 794.000 habitantes em 2024.
O clima na cidade de Porto Alegre é (ou era) caracterizado por ser subtropical úmido, com grande variação térmica durante os dias e chuvas bem distribuídas no ano. A cidade Valência possui (ou possuía) clima semiárido, com poucas chuvas e muita estiagem. Coincidência ou não, as enchentes ocorreram no outono brasileiro e, em outubro, no outono europeu. Mas ambas foram igualmente atingidas.
Segundo os meteorologistas, o fator determinante da inundação de Valência foi o fenômeno denominado de Depressão Isolada de Alta Altitude- DANA, formado pelo encontro do ar quente com o ar frio. E em Porto Alegre estima-se que o fenômeno El Niño e o bloqueio causado pelo sistema de alta pressão atmosférica no Centro-Sul do Brasil impediu o deslocamento da chuva para outras regiões do país. A chuva represada na área de Porto Alegre e outras partes do Rio Grande do Sul, gerou um volume inédito de acúmulo de águas que foi gerador da calamidade.
Por outro lado, mesmo que a dimensão da catástrofe tenha sido histórica em ambas as cidades, não se tratou de episódio inédito. Aqui, outra constatação: Porto Alegre e Valência já haviam sido destruídas pelas chuvas, no século XX. Ambas construíram obras de proteção e de canalização de águas para proteger a cidade. Esses sistemas protetivos, no século XXI, se mostraram inadequados para as condições atuais.
No que diz respeito às peculiaridades de Porto Alegre para o enfrentamento de alagamentos, pode-se citar o sistema de proteção construído nos anos 70. Nunca foi modernizado. Esse sistema é composto por 23 polders e possui 68 quilômetros de extensão. Ainda, como proteção contra as águas, há o Muro da Mauá, construído em 1974, possuindo 3 metros de altura e 2 647 metros de comprimento. Durante as enchentes de maio foi possível constatar que esse sistema de proteção e de drenagem das águas da chuva não funcionaram satisfatoriamente por falta de adequação, renovação e de manutenção.
Assim como ocorreu em Porto Alegre no ano de 1941, cidade de Valência já havia sido atingida, nos anos 50 e na década e 80, pelo transbordamento do Rio Turia, causador de grandes enchentes que atingiram o centro da cidade. Por isso, deu-se início ao Plano Sur, de canalização e desvio das águas do centro da cidade. Ali, hoje, estão os Jardins do Turia, área verde e de lazer. De referir que até então, a cidade valenciana possuía outro tipo de problema relativo à distribuição de águas: a escassez. Valência é rodeada por hortas urbanas e laranjais que sobrevivem pelas regas de água. Devido às estiagens características da região, foi criado, no século X, o Tribunal de les Aigües de València. Trata-se de tribunal em funcionamento regular até hoje, considerado com a instituição jurídica mais antiga da Europa. A finalidade do Tribunal das Águas era o de solucionar os conflitos originados pela utilização e aproveitamento da água entre os agricultores.
Ou seja, as características climáticas locais e regionais foram alteradas bruscamente e de modo possivelmente irreversível. Onde havia uma distribuição adequada de chuvas durante o ano, em horas, choveu o equivalente a vários meses. O mesmo ocorreu em Valência, até então caracterizada como área de clima seco, atingida por chuvas volumosas. Cidades com características geográficas, históricas e dimensões bastante distintas, foram atingidas por semelhante fenômeno climático, o que chama a atenção. Igualmente curioso foi que as consequências danosas foram proporcionais à infraestrutura inadequada e ao despreparo dos governos para, prontamente, enfrentar esses eventos climáticos.
Embora o tema das mudanças climáticas não fosse tão conhecido ou discutido naquele momento, certamente, não foram considerados o aumento da população, a paulatina industrialização, a expansão urbana e o processo de paulatina escassez da água potável, entre outros fatores. O fato é que ambos os sistemas de engenharia não suportaram o volume inédito de chuvas, embora tenham evitado, dentro de sua capacidade de funcionamento, a perda de vidas e danos ainda maiores.
Outro fator importante, passível de ser citado, é a forma distinta de Estado e de governo. Embora com formas diferentes, a coincidência está na matriz política local conservadora, crente do Estado-mínimo e no liberalismo individualista.
Nesse sentido, Porto Alegre integra a República Federativa Brasileira e é a capital do Estado do Rio Grande do Sul. No sistema federativo brasileiro, os municípios brasileiros possuem autonomia administrativa e competências legislativas próprias devidamente regradas pela Constituição Federal. É governada pelo prefeito municipal, eleito pela via direta. No momento da tragédia a cidade era regida pelo governo com perfil liberal e conservador, com vinculações com os ultraconservadores.
A Espanha é uma monarquia parlamentarista com o país dividido em comunidades autônomas. Valência é um município, capital da Comunitat Valenciana. Os municípios possuem autonomia administrativa para assuntos de interesse local. No momento das enchentes, a administração local está ligada ao Partido Popular- PP, tradicional e com valores conservadores.
Independente da maior ou menor autonomia ou da legislação de ordenação do território, as duas cidades não possuíam orçamento para financiar as ações necessárias de resgate e reconstrução. Ambos os municípios precisaram receber apoio logístico e financeiro do governo central.
Os episódios de maio e de outubro de 2024 são a materialização dos efeitos das mudanças climáticas. A emissão de gases poluentes, a elevação da temperatura dos mares, o aquecimento global, a impermeabilização do solo pelas construções, o uso de recursos não renováveis, o desmatamento das florestas e, especialmente da Amazônia, entre outros fatores, demandam medidas imediatas e outras de curto e longo prazo para suportar novos eventos climáticos. Segundo os especialistas, citando-se aqui o cientista climático Carlos Nobre, a doença da Terra é a Humanidade, com suas ações prejudiciais ao Planeta. Segundo ele, já estamos em estado de emergência climática que demanda ações preventivas, compromissos da sociedade civil e do poder público.
Muito embora Porto Alegre seja suscetível a eventos climáticos em razão da sua posição geográfica, causa espécie uma cidade espanhola, que recebe poucas chuvas anuais, ter sido tão atingida quanto a cidade brasileira. Pode-se então deduzir que a Natureza não está preocupada com a catalogação científica climática existente até então. Ou seja, é possível deduzir que qualquer local estaria sujeito a eventos de tamanha magnitude. Cita-se, por exemplo, as chuvas ocorridas no Deserto do Saara, no final do mês de setembro passado.
O que se percebe é que ambas as cidades não estavam- e ainda não estão- preparadas para enfrentar catástrofes de qualquer natureza. Afora os episódios em si, que vitimaram muitas pessoas e animais, percebeu-se, que nas primeiras horas após a inundação, ocorreu a inércia dos governos locais. Certamente não havia planos organizados de resgate. Nas primeiras horas, foi a sociedade civil, vivenciando a subida as águas, que se organizou de modo espontâneo para agir. Evidentemente que, após, os governos locais passaram a atuar exaustivamente na gestão de tantos problemas, dentro das possibilidades existentes naquele momento. Isso é, ambas as cidades foram surpreendidas pela força das águas, embora as enchentes não tenham sido eventos inéditos em Porto Alegre e nem em Valência.
Poder-se-ia dizer que a magnitude das chuvas impossibilitou qualquer previsão ou reação imediata. Mas isso não justifica a ausência de um mapeamento de áreas mais suscetíveis a alagamentos, o número de pessoas moradoras desses locais e plano prévio de evacuação, de resgate e salvamento das pessoas e animais.
Viu-se também que os serviços públicos próprios ou concedidos foram atingidos de tal forma que demoraram a voltar às atividades consideradas normais para aquele momento.
Segundo dados do Município de Porto Alegre, 46 bairros da cidade foram afetados, atingindo mais de 157 mil pessoas. O acumulado foi de 540 milimetros, em um total de 811 quilometros de vias urbanas da capital. Em Valência choveu cerca de 200 litros de água por metro quadrado em poucas horas, segundo dados da Agência Meteorológica Estadual.
Porto Alegre, 183 mortos, Valência, mais de 200 mortos.
As coincidências são relevantes e apontam para a mudança urgente de paradigma no trato das questões climáticas e urbanas. Valência e Porto Alegre levarão muito tempo para reconstruir o espaço urbano e transformar o trauma das chuvas em preparo e resiliência para enfrentar o desconhecido climático.
Porto Alegre, 22 de novembro de 2024.
Andrea Teichmann Vizzotto