Considerações sobre a extinção de punibilidade: o perdão presidencial

Considerações sobre a extinção de punibilidade: o perdão presidencial

Não é de hoje que o Brasil é surpreendido por atos e decisões administrativas juridicamente duvidosas e contestáveis. A edição de atos administrativos que não possuem qualquer relação com o interesse público, com flagrante desvio de finalidade, são frequentes, superando o inusitado.
Já escrevemos aqui sobre as diferenças entre o Estado de Direito e o governo, essenciais à Teoria Geral do Estado e à Ciência Política. Também já foi objeto de análise as características do interesse público, nas balizas do Direito Administrativo. Em ambos os artigos o objetivo já era o de discutir os atos do governo federal, de um modo técnico-jurídico, demonstrando que a indignação pode ser examinada nos estritos princípios da ciência do Direito.
Destaca-se a graça presidencial concedida a deputado federal condenado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em decisão ainda não definitiva, pois não houve o trânsito em julgado. Sequer é necessário adentrar no mérito da decisão do STF ou os feitos ilegais do deputado. As inconstitucionalidades e ilegalidades dos atos administrativos são tantas que nos limitaremos a elas.
Preliminarmente, deve ser diferenciada a graça, o indulto e a anistia como modos excepcionais de extinção da punibilidade. O indulto está no artigo 84, XII da Constituição Federal. A anistia está no artigo 48, VIII da Constituição Federal e a graça está prevista no artigo 734 do Código de Processo Civil. Todos são formas de extinção da punição, um modo de perdão dos atos ilegais praticados. O indulto é coletivo, geralmente com caráter humanitário, a graça é individual e a anistia pode ser individual ou coletiva, normalmente ligada a perdão de crimes políticos. Como atos jurídicos emitidos pela Administração Pública, estão sujeitos aos princípios constitucionais previstos no artigo 37, caput da Constituição Federal e àqueles implícitos no sistema jurídico-administrativo.
Pela mera leitura do Decreto sem número, o que já é de se estranhar, de 21 de abril de 2022, chama a atenção a fundamentação e a desconexão com a realidade e a interpretação dos dispositivos constitucionais e ilegais invocados:
Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;
Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;
Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e
Considerando que a sociedade encontra-se (sic)em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão;

As justificativas do Decreto não justificam e contém afirmações equivocadas e não verdadeiras.
Se há algo que não foi fraterno, nem justo e nem responsável foram as ações criminosas do deputado, geradoras da denúncia do Ministério Público Federal.
Há também uma insistente e equivocada argumentação a favor da alegada liberdade de expressão, que não se confunde com ameaça – que é tipificado como crime. O direito à liberdade de expressão não é nem absoluto e nem ilimitado, como se pretende defender.
Certo é que o indulto individual – tecnicamente denominado de graça, é ato excepcional. Entretanto, como ato administrativo deve ser justificado e estar pautado pela impessoalidade. Esse princípio demanda ação sem favoritismos ou perseguições. A impessoalidade exige a ação com finalidade pública. Impessoalidade e finalidade pública não estão presentes no caso concreto.
Ainda como justificativa do Decreto está expresso que a graça seria medida destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos da tripartição de poderes. Caso tal assertiva pudesse ser verdadeira ou sustentada, restaria oficializado o regime ditatorial e autoritário, abolindo-se a salutar e necessária autonomia dos poderes, princípio constitucional expresso no artigo de abertura da Constituição Federal.
O Decreto está fundamentado também no juízo íntegro baseado nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis. Aliado a isso, afirmou-se que a sociedade se encontra em legítima comoção em vista da condenação do parlamentar. Com a devida vênia, desde a publicação do inusitado Decreto, o que se constata é a perplexidade da comunidade jurídica e da sociedade civil sobre os termos do ato presidencial.
A última das justificativas contida no Decreto pode ser entendida como parcialmente verdadeira. Sim é verdade que o atual Presidente da República foi eleito democraticamente até outubro de 2022 e que sua missão seria a de resguardar o interesse público. Contudo, a visão do governo sobre interesse público destoa da doutrina, da legislação e da jurisprudência sobre o tema. Isso porque é notório que o Decreto foi elaborado para favorecimento pessoal de apaniguado político da autoridade federal. Tanto que o Ministério Público Federal, ultimamente tímido, ofereceu denúncia contra o deputado pelos crimes de incitar a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis (artigo 23, II da Lei Federal n. 7.170/83), incitar a prática dos crimes previstos nessa Lei Federal, tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados e usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral crime previsto no artigo 344 do Código Penal.
Percebemos que, a cada dia, o País dá um passo atrás, restando fragilizados os pilares constitucionais brasileiros, especialmente os da legalidade, impessoalidade e o da convivência democrática. Frágil o Estado, frágil a sociedade e o ordenamento jurídico brasileiro.

Andrea Teichmann Vizzotto

João Pedro Vizzotto Cirne Lima

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